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MERIDIANO DE SANGUE, Cormac McCarthy

julho 22, 2011

Acamparam em uma plataforma baixa onde paredes de agregado seco assinalavam o antigo curso de um rio e montaram uma fogueira em torno da qual sentaram em silêncio, os olhos do cão e do idiota e de alguns outros homens cintilando vermelhos como brasas em suas órbitas quando viravam a cabeça. As chamas dançavam ao vento e os tições empalideciam e avivavam e empalideciam e avivavam como o batimento sanguíneo de alguma criatura viva eviscerada sobre o chão a sua frente e eles contemplavam o fogo que de fato contém em si parte do próprio homem pois que este o é menos sem ele e se vê separado de suas origens e se torna um exilado. Pois cada fogo é todos os fogos, o primeiro fogo e o último que um dia haverá de ser. Após algum tempo o juiz se levantou e se afastou para alguma missão obscura e depois de alguns instantes alguém perguntou ao ex-padre se era verdade que em certa época houvera duas luas no céu e o ex-padre espreitou a falsa lua sobre eles e disse que podia muito bem ser que sim. Mas decerto o sábio Deus altíssimo em sua consternação pela proliferação de lunáticos nessa terra devia ter lambido um polegar e se curvado lá no caos e beliscado o astro e o extinguido com um chiado. E acaso fosse capaz de encontrar algum outro meio pelo qual os pássaros pudessem corrigir suas rotas na escuridão ele o teria feito também com essa.

Foi proposta em seguida a questão de haver em Marte ou em outros planetas no vácuo homens ou criaturas como eles e nesse ponto o juiz que voltara para junto do fogo e estava ali de pé seminu e suando falou e afirmou que não havia e que não existiam homens em parte alguma do universo salvo os que se encontravam sobre a Terra. Todos ouviram conforme falava, os que se viraram para observá-lo e os que não o fizeram.

A verdade sobre o mundo, disse, é que tudo é possível. Não o houvessem visto todos vocês desde o nascimento e desse modo o dessecado de toda sua estranheza ele se lhes revelaria tal como é, um truque com cartola num espetáculo mambembe, um sonho febril, um transe superpovoado de quimeras sem análogo nem precedentes, um parque de diversões itinerante, uma feira ambulante cujo destino último após incontáveis tendas erguidas em incontáveis terrenos barrentos é inexprimível e calamitoso além de todo entendimento.

O universo não é coisa que conheça alguma restrição e a ordem que nele reina não é compelida por qualquer latitude em sua concepção a repetir o quer que exista em uma parte em qualquer outra dada parte. Mesmo neste mundo mais coisas existem sem nosso conhecimento do que com ele e a ordem que vocês enxergam na criação é a que vocês mesmo puseram ali, como um fio em um labirinto, de modo a não se perder do caminho. Pois a existência tem sua própria ordem e esta nenhuma mente humana pode abarcar, sendo a própria mente apenas mais um fato entre outros.

MERIDIANO DE SANGUE, Cormac McCarthy

abril 29, 2011

Apertava as folhas de árvores e plantas em seu livro e tocaiava as borboletas da montanha na ponta dos pés segurando a camisa esticada com as duas mãos, falando com elas aos sussurros, não menos um curioso objeto de investigação ele próprio. Toadvine sentava observando-o enquanto fazia suas anotações no caderninho, segurando o livro na direção do fogo em busca de luz, e perguntou qual era seu propósito naquilo tudo.

A pena do juiz parou de riscar. Olhou para Toadvine. Então continuou a escrever.

Toadvine cuspiu no fogo.

O juiz continuou a escrever e depois fechou o livro e o deixou de lado e juntou as mãos e passou-as sobre o nariz e a boca e pousou a palma das mãos sobre os joelhos.

Tudo que existe, disse. Tudo que na criação existe sem meu conhecimento existe sem meu consentimento.

Olhou em torno da floresta escura onde estavam bivacados. Apontou a cabeça na direção dos espécimes que coletara. Essas criaturas anônimas, disse, talvez pareçam pequenas ou coisa nenhuma no mundo. Mas a menor migalha pode nos devorar. Qualquer coisinha minúscula debaixo dessa pedra aí que não seja do conhecimento do homem. Só a natureza pode escravizar o homem e só quando a existência da última entidade tiver sido desencavada e exposta diante dele é que ele se tornará do modo apropriado o suserano da terra.

O que é suserano?

Um guardião. Um guardião ou senhor.

Por que não diz guardião então?

Porque ele é um tipo especial de guardião. Um suserano governa até onde há outros governantes. Sua autoridade revoga qualquer deliberação local.

Toadvine cuspiu.

O juiz pôs as mãos no chão. Olhou para seu inquiridor. Isso é o que reivindico, disse. E contudo por toda parte existem bolsas de vida autônoma. Autônoma. Para que isso possa ser meu nada deve ter permissão de acontecer sobre ela a não ser por minha determinação.

Toadvine sentou com as botas cruzadas diante do fogo. Homem nenhum pode tomar conhecimento de tudo que existe sobre a terra, disse.

O juiz inclinou a enorme cabeça. O homem que acredita que os segredos do mundo estão escondidos para sempre vive em mistério e medo. A superstição o arrasta para o fundo. A erosão da chuva vai apagar os feitos de sua vida. Mas o homem que impõe a si mesmo a tarefa de descoser o fio que ordena a tapeçaria terá mediante a mera decisão assumido o comando do mundo e é somente assumindo o comando que levará a efeito um modo de ditar os termos de seu próprio destino.

Não vejo o que isso tem a ver com pegar passarinho.

A liberdade dos pássaros me insulta. Por mim estavam todos num zoológico.

Ia ser um diabo de zoológico.

O juiz sorriu. É, disse. Que seja.