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O TEATRO DAS IDEIAS, Bernard Shaw

maio 18, 2011

Já podemos, assim que tivermos força de espírito para tanto, livrar-nos do absurdo do nirvana, do pessimismo, do racionalismo, da teologia e de todos os outros subterfúgios aos quais nos agarramos por medo de olhar a vida de frente e nela ver não a realização de uma lei moral ou das deduções da razão, mas a satisfação de uma paixão que vem de dentro de nós e da qual não podemos nunca prestar contas. É natural que o homem se encolha diante da terrível responsabilidade que esse fato inexorável atira sobre ele. Todas as desculpas de seu acervo dissolvem-se diante de tal fato – “A mulher me tentou”; “A serpente me tentou”; “Não estava em mim naquela hora”; “Não queria fazer mal”; “Minha paixão falou mais alto que a razão”; “Era meu dever fazê-lo”; “A Bíblia diz que devemos fazê-lo”; “Todo mundo faz”; e coisas assim. Nada resta senão a confissão franca: “Fiz porque sou assim”. Todos detestam dizer isso. Querem acreditar que seus atos generosos são sua característica verdadeira e que suas maldades são aberrações ou produtos da força das circunstâncias.

O TEATRO DAS IDÉIAS, Bernard Shaw

maio 5, 2009

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“COMO TORNAR-SE UM GÊNIO.

No fundo, o grande segredo é o seguinte: os gênios não existem. Eu sou um gênio e portanto sei. O que há é uma conspiração para fazer de conta que os gênios existem e uma escolha das pessoas certas para assumir o papel imaginário de gênio. O difícil é ser escolhido.

Pensando bem, acho que isso é simples demais para servir de explicação. Vamos tentar outro caminho. Você admitirá, pelo menos, que embora o Homem tenha – como cinicamente acredita – excelentes razões íntimas para não se dar muito valor, tem também um nobre desejo de aperfeiçoar-se – ele aspira a coisas melhores, como se diz normalmente. Pois bem: quando uma criança deseja algo que não tem, o que ela faz? Faz de conta que tem. Monta numa varinha e promove uma conspiração para fazer a varinha passar por cavalo. Ao crescer, ela deixa de fazer de conta que a varinha é um cavalo, não porque tenha superado a mania de conspirar para sustentar ilusões, mas sim porque a vida adulta a coloca em um plano em que pode conseguir cavalos de verdade e a partir desse ponto torna-se desnecessário fazer de conta. Nesse momento, levanta-se a mão que mantinha os olhos fechados para o absurdo do fazer de conta. É só por isso que se diz que o homem adulto, ou o civilizado, é mais ‘ajuizado’ que a criança, ou o selvagem. Como ele pode conseguir mais, finge menos. Mas com relação às coisas que estão fora do seu alcance, ele faz de conta com tanta desfaçatez quanto uma criança de cinco anos.

Por exemplo, como dissemos, ele deseja aperfeiçoar-se. Mas será que isso é possível? – pois o Homem, mesmo que pense o contrário, não tem a capacidade de conceber nada que não faça parte da sua própria experiência e, portanto, em certo sentido, não pode conceber nada que seja maior que ele próprio, nem desejar algo que não tenha concebido. Mas essa dificuldde é de fácil transposição. Diga-me, prezado senhor ou senhora: quem é você? É você quando está com pessoas amigas, ou quando está entre pessoas hostis? É você antes, ou depois do jantar? É você rezando, ou fazendo negócios? Ouvindo uma sinfonia de Beethoven, ou sendo empurrado por um policial para dar passagem a um cortejo? Comprando um presente para o seu primeiro amor, ou pagando imposto? Fascinando a todos com as suas melhores roupas, ou escondendo os chinelos do olhar alheio? Se um inimigo seu selecionasse um momento de sua vida para julgá-lo, você não apareceria mau, feio, covarde, vulgar, lascivo, mesmo que fosse um Goethe? E se você próprio escolhesse esse momento, não apareceria generoso e belo, ainda que, na média de todos os momentos, seja uma pessoa miserável e repulsiva? Por pior que seja, você é corajoso quando não há perigo e dadivoso quando ninguém lhe pede nada. Daí a atração pelos heróis de novelas e livros prediletos.

Assim, nossa experiência nos oferece material para o conceito de uma pessoa sobre-humana. Basta você imaginar alguém que seja sempre tão bom quanto você nos dez melhores segundos de sua vida, sempre corajoso como você se sentiu ao ler Os Três Mosqueteiros, sempre instantaneamente sábio como os livros em que os filósofos registraram as corrreções dos erros de seu temppo, sempre desprendido como você se sente quando está plenamente satisfeito, sempre belo e nobre como sua esposa ou seu marido lhe pareceu no auge da paixão que levou à experiência matrimonial que talvez depois você tenha lamentado, e aí está o seu poeta, o seu herói, a sua Cleópatra, ou quem quer que você escolha para simbolizar o nível sobre-humano, por meio de uma simples reorganização de sua própria experiência, a qual, por sua vez, foi construída em grande parte pelo mesmo processo.

Em verdade eu digo que sábio é aquele que diz: Para que iludir-me assim tão tolamente? Por que não dirigir meu afeto, minha esperança e meu entusiasmo aos homens e mulheres como eles são, mudando de um dia para o outro, raramente capazes de enxergar o céu além das nuvens, ao invés de fixar-me nesses monstros ideais que nunca existiram e nunca existirão e por causa dos quais os homens e mulheres se desprezam mutuamente e tornam a terra ridícula com o pessimismo, que é o fim inevitável de todo idealismo? Mas o homem médio ainda não é sábio: ele tem seus ideais assim como a criança tem o seu cavalo de varinha. E quanto mais baixo ele estiver, mais extravagantes serão suas exigências. Todos sabemos quão exigente e severo é o subalterno mais reles quando se trata do caráter e do comportamento da mulher a quem ele propôs confiar a honra do seu nome, e como o grande homem escandaliza os amigos com sua tolerância para com os publicanos e pecadores. Aqui também, se você escreve peças como essas que são exibidas em teatros de baixa reputação, cujos freqüentadores são todos batedores de carteira, o seu personagem tem de mostrar grande indignação e fervente honestidade, com uma ênfase que uma platéia habituada a respeitar a lei não agüentaria nem por meia hora.

(…)

Agora vamos do microcosmo para o macrocosmo – do teatro barato para o grande palco shakespeariano do ‘mundo todo’, que tem também, observe-se, os seus ladrões na platéia. Nesse palco há muitos papéis a serem atribuídos, pois o público tem seu ideal de reai, presidente, homem de Estado, santo herói, poeta, Helena de Tróia e gênio. Ninguém pode SER esses entes fictícios; mas alguém tem de representá-los para que o público não ponha o teatro abaixo.

(…)

Está claro agora como proceder para tornar-se um gênio. Você deve ativar a imaginação do público de modo que as pessoas o escolham como a encarnação de seu ideal de gênio. Fazer isso requer, sem dúvida, algumas qualidades extraordinárias e bastante engenho profissional; mas não é de modo algum necessário ser aquilo que o público faz de conta que você é. Ao contrário, se você próprio acreditar no ideal e não tiver a vaidade necessária para crer-se capaz de realizá-lo; se desistir, desencorajado por sentir que você não é como se imagina; se não souber, como sabe todo conspirador, que a imaginação do público compensará todas as suas deficiências e lutará em defesa de sua total autenticidade como o fanático luta por sua crença, então você será um fracasso. ‘Cumpra bem o seu papel: é aí que está a honra’.

É possível, contudo, que as circunstâncias lhe reservem um papel tão humilde que mesmo o maior dos talentos dificilmente logrará levá-lo à notoriedade. Você deve então contentar-se com a obscuridade ou fazer o que fez Sothern com o papel de lorde Dundreary em Our American Cousin, ou o que fez Frédéric Lemaître com o papel de Robert Macaire em L’auberge des Adrets. Drespreze a intenção do autor e crie para si mesmo um fantástico papel a partir de um personagem meramente circunstancial ou de um vilão melodramático comum e corrente. Este é o recurso ao qual fui levado. Há muito pouco tempo, a produção de uma peça minha (Arms and the Man) em Nova York levou os jornais da cidade a publicar uma série de críticas brilhantes e estudos biográficos de uma pessoa notável chamada Bernard Shaw. Supõe-se que eu seja essa pessoa; mas não sou. Não existe tal pessoa; nunca existiu; nunca existirá, nem poderá existir. Pode acreditar no que digo porque eu o inventei, divulguei, promovi e personinfiquei e agora estou aqui, sentado no meu surrado apartamento no segundo andar de uma praça decadente de Londres, comendo um mingauzinho barato no café da manhã e dando este retoque adicional em sua maquiagem por intermédio de minha máquina de escrever. Minha confissão não abalará nem um pouco a fé do público; eles dirão apenas ‘Como ele é cínico!’ e talvez os mais sensíveis digam: ‘Que pena que ele seja tão cínico!’.

(…)

Somos forçados a simplificar os problemas, dividindo os homens entre heróis e vilões, as mulheres entre boas e más, o comportamento entre a virtude e o vício e a personalidade entre a coragem e a covardia, a verdade e a mentira, a pureza e a licenciosidade, e assim por diante. Tudo isso é infantil; e por vezes, quando toma a forma de um homem vestido como Justiça, que determina a morte de outro homem, encarcerado como Crime, é bastante assustador. De todos os modos, esse cortejo de reis, bispos, juízes e o que mais seja é, para os intelectos mais elevados, praticamente tão válido em sua pretensão a realidade quanto a Festa do Prefeito de Londres em sua pretensão a dignidade. Um dia, nos livraremos de tudo isso.”