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A HISTÓRIA DO CABELO, Alan Pauls

janeiro 17, 2014

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Há um momento na vida em que ele começa a pensar no cabelo como os outros pensam na morte. Não assim de repente, ah, o cabelo! Não, ele não descobre algo cuja existência ignorava. Sempre soube que o cabelo está ali, entocado em algum lugar, mas pôde viver perfeitamente sem levá-lo em conta, sem torná-lo algo presente. Não descobre uma experiência, mas uma dimensão; não algo que sua vida não tivesse incluído até então: algo que já estava nele, trabalhando-o em silêncio, com uma paciência de ruminante, à espera do momento oportuno para acordar e emitir os primeiros sinais de uma vida visível. A morte é um exemplo clássico. Sabe-se que “existe a morte” como se sabe que o destino de todo corpo é decair ou que a água, numa determinada temperatura, transforma-se em vapor. É algo que se sabe: uma certeza invisível, administrada diariamente e em doses tão infinitesimais que perde consistência, confunde-se com o contínuo da vida e acaba passando despercebida. Assim por anos a fio. Até que de repente aparece e reivindica o que é seu. Um conhecido sofre um ataque enquanto dirige e a cadeira que duas semanas depois estava reservada para seu jantar de aniversário fica vazia para sempre. Alguém próximo se queixa de uma dor insignificante ao engolir e dias depois o médico que anota numa ficha o relato que lhe faz o episódio para de escrever e levanta a cabeça e olha para ele franzindo o cenho. De repente algo se precipita e se consolida: o que era invisível e sigiloso se torna material, de pedra, ineludível, um obstáculo escuro que não chega a bloquear totalmente o caminho mas contra o qual não há jeito de não tropeçar, e que, intruso vigilante, começa a aparecer em todas e em cada uma das fotografias que tiramos quando brincamos de imaginar nosso futuro.

O PASSADO, Alan Pauls

julho 28, 2009

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O amor é uma torrente contínua.

O PASSADO, Alan Pauls

abril 28, 2009

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“Acreditavam no modo como se amavam, e essa crença era mais forte que qualquer natureza, qualquer sinal que o mundo lhes dirigisse para desmenti-los ou ridicularizá-los. Eram arrogantes e modestos, altivos e extraordinariamente prestativos. Não dividiam seus problemas com ninguém – havia algo de mafioso, um espírito de corpo e uma discrição inflexíveis, ditados pelo amor mas avivados por uma espécie de medo da catástrofe, em sua maneira de evitar as infiltrações –, porém o pequeno apartamento de Belgrano R não demorou a se transformar na clínica sentimental, aberta vinte e quatro horas por dia, pela qual acabaram passando praticamente todos os seus amigos. Todos: os que a cada 1º de janeiro lhes vaticinavam secretamente o fim, os que tentavam desesperadamente copiá-los, os equidistantes, que aprovavam o prodígio, mas volta e meia lhes expunham suas ‘reservas’ – e também seus pais, sedentos da clareza e da sabedoria que seus próprios modos de se amar, ao que parece, não estavam em condições de lhes proporcionar. Nunca julgavam: ouviam. Eram amplos, tolerantes, de uma equanimidade irrepreensível. Talvez essa fosse a única coisa da qual, depois de terminadas as ‘consultas’, em particular, eles aceitassem se gabar: monógamos, conservadores, partidários de uma disciplina amorosa que exigia água e ar e luz diários, não lhes custava nada entender os amigos que militavam na facção oposta – paixões efêmeras, desejo insensato, descontinuidade, inconstância –, mesmo quando a ajuda que lhes prestavam fosse inconcebível na direção contrária.”