— Tem uns caras desconhecidos querendo alugar meu barco para fazer uma viagem — explicou.
— Mas o pessoal da alfândega apreendeu o seu barco.
— Sim, mas os tais sujeitos não sabem disso.
— Que viagem é essa?
— Dizem que querem levar alguém que precisa ir a Cuba tratar de um negócio e não pode viajar nem de avião nem de navio. Era sobre isso que o Bico Doce estava conversando comigo.
— Tem gente fazendo isso?
— Claro! Todo dia, depois da Revolução. Pelo jeito, não é nada difícil. Muita gente vai até Cuba assim.
— E o barco?
— Temos de roubar o barco. Você sabe, não o consertaram ainda, e não posso dar partida no motor sozinho.
— Como vai tirá-lo da capitania?
— Dou um jeito.
— E como vamos voltar?
— Ainda não pensei nisso. Se não está querendo ir, pode dizer.
— Claro que estou, mas só se for para ganhar alguma grana.
— Escute — disse Harry. — Você está ganhando sete dólares e meio por semana. Tem na escola três crianças que sentem fome ao meio dia. Tem uma família com a barriga doendo e eu lhe dou uma oportunidade de ganhar um dinheirinho.
— Você não disse quanto será esse dinheirinho. A gente precisa ganhar uma grana firme quando se arrisca.
— Você sabe muito bem que agora não tem muito dinheiro em jogada nenhuma, Al — argumentou Harry. — Veja o meu caso… Eu costumava ganhar trinta e cinco dólares por dia, durante a estação inteira, levando gente para pescar. Agora, fui baleado, perdi o braço e o meu barco, contrabandeando uma merda de uma carga de bebida que mal valia o preço do barco. Mas, me escute bem, minhas crianças não vão ficar com a barriga doendo de fome e não vou cavar esgotos para o governo por menos dinheiro do que preciso para alimentá-las. Aliás, fosse como fosse eu não ia poder mesmo cavar esgotos agora. Não sei quem fez as leis, mas sei que não há lei que nos obrigue a passar fome.
— Cheguei a fazer greve por mais salário — repliquei.
— É, mas depois voltou ao serviço — disse ele. — Espalharam por aí que vocês estavam fazendo greve contra a caridade do governo. Você sempre trabalhou, não foi? Nunca pediu nenhuma esmola.
— Não existe muito trabalho sendo oferecido hoje em dia — eu resmunguei de volta. — Está difícil conseguir ganhar o que a gente precisa para viver.
— Por quê?
— Não sei.
— Nem eu. Mas enquanto tiver gente comendo por aí, minha família também vai comer. Eles estão querendo é que vocês, conchos, passem fome até darem o fora, para poderem fazer disto aqui uma cidade só para turistas.
— Você fala como um radical — disse eu.
— Não sou radical coisa nenhuma — respondeu. — Estou cheio de tudo. Estou cheio, e já há muito tempo.
— Acredito. E perder o braço não fez você se sentir melhor.
— Para o diabo com o meu braço! Quem perde um braço perde um braço. Tem coisas piores do que perder um braço. A gente tem dois braços e também tem duas de uma outra coisa. Um homem ainda é um homem com apenas um braço ou com apenas uma daquelas coisas. Para o diabo com tudo isso! Não quero falar nesse assunto.
Depois de um minuto de silêncio, acrescentou:
— Eu ainda tenho aquelas duas outras coisas.