UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES, Clarice Lispector

junho 9, 2020

“Nós ainda somos moços, podemos perder algum tempo sem perder a vida inteira. Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmo, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo” e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.”


O COMPLEXO DE PORTNOY, Philip Roth

agosto 5, 2018

“Ao invés de chorar por aquele que se decide aos catorze anos a jamais pôr os pés de novo numa sinagoga, ao invés de lamuriar-se por aquele que deu as costas à saga do seu povo, tratem é de chorar por vocês mesmos, que não param de chupar e chupar a uva azeda dessa religião! Judeu judeu judeu judeu judeu judeu! Já está espirrando pelos meus ouvidos, esta saga de judeus sofredores! Façam-me um favor, meu povo, enfiem a herança sofredora no seu cu sofredor, pois acontece que também sou um ser humano!

Mas você é um judeu, diz minha irmã. É um garoto judeu, mais do que pensa, e não está fazendo outra coisa senão se tornar infeliz, berrando ao vento…

(…)

Sabe, pergunta-me ela, onde estaria agora se houvesse nascido na Europa, ao invés de na América?

A questão não é essa, Hannah.

Morto, diz ela.

A questão não é essa!

Morto. Na câmara de gás, ou fuzilado, ou incinerado, ou chacinado, ou enterrado vivo. Sabe disso? E podia gritar à vontade que não era judeu e sim um ser humano, que nada tinha a ver com a sua estúpida herança sofredora, ainda assim seria levado para o seu destino. Estaria morto, eu estaria morta e…

Mas não é sobre isso que estou falando!

Sua mãe e seu pai estariam mortos.

Por que há de estar do lado deles!

Não estou do lado de ninguém, diz ela. Estou só lhe dizendo que ele não é uma pessoa tão ignorante quanto você pensa.

Vai me dizer que minha mãe também não é? Vai me dizer que os nazistas fazem com que tudo o que ela diz e faz seja inteligente e brilhante? Vai me dizer que os nazistas sejam uma desculpa para tudo o que acontece nesta casa?

Oh, não sei, diz minha irmã, talvez: talvez sejam. E agora ela começa a chorar também, fazendo-me sentir um monstro, pois deita lágrimas por seis milhões, pelo menos é o que me parece, ao passo que eu verto a minha só por mim mesmo. Ou pelo menos é o que me parece.”


A VIDA SUBMARINA, Ana Martins Marques

abril 21, 2018

 

SEDA

 

É tão difícil amar
neste mundo imperfeito
é difícil dizer alguma coisa
que não seja um equívoco
é difícil encontrar
o peso correto
das coisas
saber nosso próprio tamanho
olhar alguns bichos nos olhos
pensar com doçura
aproveitar adequadamente a luz
desejar para o pássaro um destino de pássaro,
para a seda, um destino de seda.

 


CARTAS DE VIAGEM E OUTRAS CRÔNICAS, Campos de Carvalho

abril 13, 2018

Ao por os pés no chão cada manhã deveríamos pensar: estou realizando o ato mais importante que um homem pode realizar fora de sua cama e de si mesmo, que é o de pisar o mundo, em consequência carregá-lo às costas, sentir-lhe todas as alegrias e tristezas humanamente e não como um robô ensinado por seus pais e avós também robôs. Estou pisando o mundo e só eu posso na minha fragilidade e em meio a tanto espelho e a tanta porta descobrir o que é certo e o que não é, qual o caminho que leva ao mar como acontece às tartarugas recém-nascidas e quais os caminhos que não levam a lugar nenhum e de onde nos espreita, com suas mil faces, o anjo da morte. Só eu posso na minha cegueira guiar-me com as luzes profundas da intuição, aquele fiapo de luz entrevisto no fim do imenso túnel e ao qual me agarrarei como o afogado à ponta de uma corda: uma possibilidade em mil de salvar-me, de acertar com o meu caminho, mas sempre uma razão de viver e de ainda continuar vivo, lado a lado com os milhões de espermatozóides que tentam comigo a grande aventura. Um crápula muitas vezes perplexo no seu (alheio) labirinto, dando murros no ar e imprecando nas trevas – mas o mesmíssimo ser capaz de amanhã escrever um Invenção de Orfeu ou beijar qual Francisco de Assis todos os leprosos do caminho, levado pelos ventos do gênio ou da santidade, o olhar perdido no horizonte enfim achado, finalmente em paz com a sua consciência e pronto para morrer para o mundo e depois morrer.

 


A GLÓRIA E SEU CORTEJO DE HORRORES, Fernanda Torres

fevereiro 5, 2018

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Acabara de anoitecer. Os postes recém-acesos ainda piscavam fracos. Uma rajada quente anunciou chuva. Os dois quarteirões que me separavam da praça revelaram-se sinistros com o fim do dia. Tratei de apressar o passo. A pior desgraça dessa cidade é o pavor de dobrar a esquina.


O FILHO DE MIL HOMENS, Valter Hugo Mãe

outubro 22, 2017

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“Os filhos, pensava ele, são modos de estender o corpo e aquilo a que se vai chamando alma. São como continuarmos por onde já não estamos e estarmos, passarmos a estar verdadeiramente, porque ansiamos e sofremos mais pelos filhos do que por nós próprios, assim como nos reconfortam mais as alegrias deles do que a satisfação que diretamente auferimos. Por isso temos gula pelos filhos, uma gula do tamanho dos absurdos, sempre começada, sempre incontrolável. E queremos tudo dos filhos como se nunca nos bastasssem, nunca nos cansassem porque, ainda que nos cansemos, estamos incondicionalmente dispostos a continuar, uma e outra vez até que seja o corpo extenuado a desistir, mas nunca o nosso ímpeto, nunca o nosso espírito. Até porque desistir de um filho seria como desistir do melhor de nós próprios. Cada filho somos nós no melhor que temos para dar. No melhor que temos para ser.”


UM COPO DE CÓLERA, Raduan Nassar

maio 25, 2017

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“só usa a razão quem nela incorpora suas paixões”


NOTAS DO SUBSOLO, Dostoiévski

abril 3, 2017

 

As veneráveis formigas começaram com um formigueiro e terminarão também, provavelmente, com um formigueiro, o que muito honra sua constância e sua natureza positiva. Mas o homem é um ser inconstante e pouco honesto e, talvez, à semelhança do jogador de xadrez, gosta apenas do processo de procurar atingir um objetivo , e não do objetivo em si. E quem sabe? Não se pode garantir, mas talvez todo o objetivo a que o homem se dirige na Terra se resuma a esse processo constante de buscar conquistar ou, em outras palavras, à própria vida, e não ao objetivo exatamente, o qual, evidentemente, não deve passar de dois e dois são quatro, ou seja, uma fórmula, e dois e dois são quatro já não é vida, senhores, mas o começo da morte. Pelo menos, o homem sempre teve um certo temor desse dois e dois são quatro, e eu até agora tenho. Suponhamos que o homem não faça outra coisa além de procurar esse dois e dois são quatro, atravessando oceanos, sacrificando a vida nessa busca, mas sou capaz de jurar que ele tem medo de encontrá-lo realmente. Porque ele sente que, assim que o encontrar, não haverá mais nada para procurar. Os trabalhadores, ao término do trabalho, pelo menos recebem seu dinheiro e podem ir para o botequim e depois podem acabar na delegacia – e têm, assim, ocupação para a semana. Mas o homem para onde irá? Pelo menos, sempre se nota que ele fica um pouco sem jeito quando consegue atingir algum desses objetivos. Ele ama o processo de conseguir, mas atingir mesmo, nem tanto, e isso, claro está, é terrivelmente engraçado. Em uma palavra, o homem é constituído de modo cômico; em tudo isso, pelo visto, há um jogo de palavras. Mas dois e dois são quatro é, de qualquer modo, uma coisa extremamente insuportável. Dois e dois são quatro, na minha opinião, é pura insolência. Dois e dois são quatro olha para você com ar petulante, fica no meio do seu caminho com as mãos na cintura e cospe pro lado. Concordo que dois e dois são quatro é uma coisa excelente; porém, se é para elogiar tudo, então dois e dois são cinco às vezes também é uma coisinha bem encantadora.


O DIABO E OUTRAS HISTÓRIAS, Liev Tolstói

agosto 8, 2016

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O DIABO

(…)

Costuma-se pensar que os velhos são mais conservadores e os jovens, inovadores. Isso não é de todo verdadeiro. As pessoas mais conservadoras em geral são os jovens, que desejam viver, mas que não pensam nem têm tempo para pensar como se deve viver e por isso tomam como modelo a vida já conhecida.


O DIABO E OUTRAS HISTÓRIAS, Liev Tolstói

agosto 8, 2016

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KHOLSTOMÉR, A HISTÓRIA DE UM CAVALO.

(…)

Eu entendi bem o que eles disseram sobre os lanhões e o cristianismo, mas naquela época era absolutamente obscuro para mim o significado das palavras “meu”, “meu potro”, palavras através das quais eu percebia que as pessoas estabeleciam uma espécie de vínculo entre mim e o chefe dos estábulos. Não conseguia entender de jeito nenhum em que consistia esse vínculo. Só o compreendi bem mais tarde, quando me separaram dos outros cavalos. Mas, naquele momento, não houve jeito de entender o que significava me chamarem de propriedade de um homem. As palavras “meu cavalo”, referidas a mim, um cavalo vivo, pareciam-me tão estranhas quanto as palavras “minha terra”, “meu ar”, “minha água”.

No entanto, estas palavras exerciam uma enorme influência sobre mim. Eu não parava de pensar nisso e só muito depois de ter as mais diversas relações com as pessoas compreendi finalmente o sentido que atribuíam àquelas estranhas palavras. Era o seguinte: os homens não orientam suas vidas por atos, mas por palavras. Eles não gostam tanto da possibilidade de fazer ou não fazer alguma coisa quanto da possibilidade de falar de diferentes objetos utilizando-se de palavras que convencionam entre si. Dessas, as que mais consideram são “meu” e “minha”, que se aplicam a várias coisas, seres e objetos, inclusive à terra, às pessoas e aos cavalos. Convencionaram entre si que, para cada coisa, apenas um deles diria “meu”. E aquele que diz “meu” para o maior número de coisas é considerado o mais feliz, segundo esse jogo. Para quê isso, não sei, mas é assim. Antes eu ficava horas a fio procurando alguma vantagem imediata nisso, mas não dei com nada.